essa coisa #01: dos inícios
e se eu tivesse planejado que a primeira edição da minha newsletter seria sobre um novo início, provavelmente, isso não aconteceria.
parte 1
a fotografia sempre foi um tema familiar. tanto em relação à minha família quanto à intimidade com o assunto.
eu nunca vi uma fotografia dos meus pais em suas versões infantis. e o que eu sinto é que as infâncias deles foram realmente perdidas, numa luta pela sobrevivência. eu nunca vi uma fotografia do meu pai em sua juventude. da minha mãe, só a conheci a partir dos seus 15 anos, numa fotografia que estampa sua primeira carteira profissional. depois, as poucas fotografias tiradas e que sobraram são de quando já eram meu pai e minha mãe. a minha preferida delas é no meu batizado: meu pai, minha mãe, minhas irmãs, meus tios e tias paternos, meus avós paternos que eram meus padrinhos, eu no colo da minha avó (amor eterno) e ela tirando o meu dedo do nariz. o instante perfeito.
já faz vinte e cinco anos que meu pai faleceu e, pela ausência de recordações materiais, sinto muito medo de esquecer as suas feições. atualmente, eu preciso fazer um esforço tremendo para lembrar a sua voz, para lembrar as suas feições: o cabelo preto liso de um homem afro-indígena, o bigode da época, os olhos castanhos. a cara séria. mesmo com esforço, não sei realmente se lembro quem ele era ou se essa já é uma imagem já transformada pela minha memória, soterrada por acontecimentos infantis, adolescentes e da vida adulta: tudo que passou depois da sua morte.
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outro fato importante sobre a fotografia na minha família é que, das três filhas, apenas eu tive um álbum. minha irmã mais velha, como a primeira filha, teve muitos momentos da infância registrados, principalmente, enquanto era a única. minha irmã do meio não tem muitas fotografias de si enquanto criança. eu tenho um álbum. talvez, seja apenas a benesse de ser a caçula ou de ser a miniatura da própria mãe, mas sempre me perguntei o que deve ter mudado internamente nos meus pais para desejarem registrar uma tarde da minha infância. eles chamaram um fotógrafo na nossa casa pequena, fizeram um penteado e mudaram minhas roupas duas vezes durante o ensaio. um cuidado poderoso de se registrar. há no álbum uma fotografia minha com a minha irmã do meio, sempre fomos próximas, e a história que minha mãe conta sobre essa fotografia é que minha irmã vestiu sua roupa preferida, uma bermuda vermelha de festa junina e uma camiseta, e entrou na cena, chorando, pois queria ser fotografada. essa fotografia, para mim, assim, dentro de um álbum, de uma narrativa, marca um momento de ruptura. minha irmã, de uma forma infantil, denuncia que não havia tido um momento como aquele. depois daquela tarde, recebemos as fotografias reveladas num formato grande, organizadas dentro de um álbum com capa dura, que eu guardo até hoje.
eu nunca perguntei para minha mãe por que ela quis que eu fosse fotografada - afinal, anos 1980, a fotografia era algo caro e, provavelmente, meus pais abriram mão de algo para bancar esse gesto, mas sempre agradeço porque eu pude me conhecer criança através dessas imagens.
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quando eu entrei no Doutorado e comecei a pesquisar a fotografia de mulheres negras, por meio das entrevistas que fiz, percebi que a ausência de registros fotográficos não era algo referente apenas à minha família. assim como tantas outras coisas, essa ausência se repetia continuamente entre pessoas negras. eu ouvi relatos de partir o coração.
a Fotografia chegou ao Brasil próximo à abolição da Escravatura. obviamente, era algo de brancos para brancos, então, passaram-se anos até que tivéssemos o primeiro fotógrafo negro (José Ezelino da Costa) que, curiosamente, se ocupava em registrar sua família, de mãe ex-escravizada, e outras pessoas de sua comunidade. o olhar do Ezelino não tinha a ver com a forma como as pessoas negras eram retratadas pelas pessoas brancas naquela época. nisso, temos a chave que abriu muitos depoimentos da minha tese: a importância de se ver através de lentes de fotógrafos/as/es negros/as/es.
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a fotografia tomou a minha vida enquanto eu estava no Doutorado. pesquisava, estudava, fotografava. no meio do processo, engravidei e pensei muito na diferença da produção de imagens entre meus pais e eu e eu e meu filho. eu não preciso dizer que meu filho, com seus 3 anos, já tem muito mais fotografias do que eu e seu pai juntos, no mesmo período de vida. e, quando meu filho nasceu, eu tive que pensar sobre maternidade, sobre maternidade negra. que mãe negra eu seria para o meu filho negro? eu encontrei poucas respostas para essa questão nos livros. achei na minha mãe e no que ela transmitiu para mim: nessas mudanças que podem ser consideradas pequeninas, como foi me presentear com a minha imagem criança, algo que ela não teve.
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(amo, ainda, uma fotografia 3x4 da minha mãe, que serviu de start para o meu próximo livro: umbilicais, que será lançado no primeiro semestre de 2026).
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nesse mergulho para dentro dos livros, percebi que as mães negras foram coladas na imagem de controle (para esse assunto, ler Patricia Hill-Collins) da mammy, das mães pretas, amas-de-leite: mulheres negras forçadas a cuidar dos filhos brancos de seus senhores em detrimento dos seus próprios filhos, alimentando os pequenos algozes com o leite que deveria ser de quem se gestou. se a Escravidão, enquanto sistema, acabou, essa imagem permanece.
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contudo, a Fotografia é, para mim, um instrumento de mudança social. e algumas mudanças, como nos ensinou a bell hooks, só acontecem quando novas imagens são veiculadas. eu me fotografo com meu filho e passei a fotografar outras mães negras com seus/suas filhos/as/es negros/as/es para deixar registrado na História o que é a maternidade para nós, como é a nossa maternidade. foi assim, de algo tão íntimo, que surgiu o meu projeto fotográfico “Maternidade negra à luz”, que recentemente foi contemplado pelo ProAc (Programa de Ação Cultural) do Governo de São Paulo. além da exposição, teremos cursos, oficinas e debates sobre Fotografia, pessoas negras, maternidade negra e mais. aos poucos, vou contando para vocês como sigo :)
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continua…
extras:
como primeira contrapartida para a sociedade do projeto “Maternidade negra à luz”, vamos oferecer um Curso Básico de Fotografia Digital para pessoas pertencentes a grupos marginalizados. o curso é gratuito, presencial e constituído por 20 aulas (60 horas). para mais informações e inscrição, clique aqui.
no próximo sábado, 17 de maio, participarei do Megafone, uma ação de leitura de poemas do Festival de Poesia no Centro, que acontecerá no Teatro Cultura Artística, em São Paulo/SP. 12h. nos vemos?
Belo começo, estava curiosa com sua News. Bem vinda ❤️
Iniciou lindamente, Lubi! Já esperando as próximas. 💌